Postado em sábado, 5 de julho de 2025 às 11:11

A tragédia da poluição sonora

O Renato Rizo Ventura faz uma análise sobre a crescente poluição sonora no mundo contemporâneo, realidade enfrentada pela sociedade alfenense. Confira!


 Por Renato Rizo Ventura*

Enquanto escrevo este texto tento manter minha mente focada em meio ao barulho irritante do escapamento adulterado de uma moto, além da televisão ligada e conversas paralelas. É bem provável que o leitor se identifique imediatamente com esta cena, afinal, esse é o cotidiano da maioria das pessoas no mundo, ao menos daquelas que residem em ambiente urbano.

A preocupação com o barulho excessivo não é uma questão de sociedades modernas, nem tampouco tem a ver unicamente com o boom tecnológico das últimas décadas. Já no século XVII, o filósofo e matemático francês Blaise Pascal entendeu a necessidade do silêncio para o desenvolvimento do intelecto quando escreveu "Todos os problemas da humanidade derivam da incapacidade do homem de ficar quieto, sozinho, em um quarto".

Com a chegada da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, novos ruídos surgem com as máquinas a vapor e os apitos das fábricas. Décadas mais tarde, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer reafirma o infortúnio de se viver em um ambiente barulhento e que isso era uma tortura para o intelecto. Mal sabia o filósofo alemão que o problema só pioraria, como se o crescimento da população estivesse atrelado inexoravelmente ao crescimento do barulho no mundo.

A criação da Sociedade para Supressão do Ruído Desnecessário em Nova York, no século XX, é um exemplo de tentativa de se frear o crescimento da poluição sonora. Infelizmente, o que temos hoje é um mundo muito mais barulhento que outrora e, seguindo a lógica consumista, se o barulho virou mercadoria, o silêncio também pode ser vendido a um preço alto. Neste sentido, as próprias empresas geradoras de ruídos nos vendem dispositivos para minimizar a agonia das batidas tecnológicas. Contudo, parece que o ruído flui como a água entre as frestas de qualquer barreira e acaba por atingir os ouvidos, principalmente os mais sensíveis.

A indústria da construção civil está cada vez mais diversificada com opções de materiais antirruído em janelas, portas, paredes e telhados. Isso, no entanto, é para poucos. A maioria sequer pode se dar ao luxo de se mudar para o campo, junto da natureza e do silêncio acalentador. Para esta parcela majoritária da população, o que resta é tão somente sobreviver neste inferno ruidoso. Se não bastasse essa realidade infeliz, é preciso ainda esclarecer os impactos da poluição sonora sobre a vida, em toda a sua amplitude.

Um dos problemas vivenciados por grande parcela da população atual, principalmente as gerações nato digitais, é a falta de foco e uma menor capacidade de se concentrar em uma determinada tarefa, por um tempo relativamente mais longo. Apesar de ser considerado um problema de causa multifatorial, certamente o excesso de ruído ambiental acaba por distrair o nosso cérebro com múltiplos estímulos sonoros, desviando a nossa atenção do objeto principal.

Um exemplo claro disso é a dificuldade de concentração na leitura profunda, um tipo de leitura na qual nosso cérebro muda seu padrão de funcionamento, aprofundando nossa atenção e ampliando nossa criatividade, eventos primordiais para a consolidação da memória.

Por falar em memória, importante também destacar que o barulho excessivo, principalmente à noite, impede que tenhamos uma qualidade de sono desejável e a neurociência já sabe de longa data que quem dorme mal não aprende bem. Esse efeito crônico do ruído excessivo sobre o nosso sono pode aumentar os níveis do hormônio cortisol no nosso sangue, refletindo num aumento da ansiedade e da irritabilidade. O cortisol em excesso pode reduzir o número de conexões entre neurônios no hipocampo, uma região do nosso cérebro fundamental para a memória de longo prazo, além de estar envolvido também com casos de depressão, uma doença que vem crescendo assustadoramente nas últimas décadas.

Do ponto de vista social, estudos têm demonstrado uma correlação positiva entre nível de barulho e violência nas cidades, impactando negativamente a segurança das pessoas. Doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes, perda auditiva, perda de memória, dificuldade de concentração ampliam o rol de problemas causados pelo excesso de barulho no ambiente. Até mesmo os animais são impactados negativamente com o excesso de ruído. Pesquisas têm demostrado um prejuízo significativo na capacidade de navegação, acasalamento, alimentação e comunicação de diversas espécies animais, com prejuízos diretos na biodiversidade, afetando todos os seres vivos.

No âmbito da legislação vigente, temos em Alfenas a Lei Municipal nº 4.526/2014 que dispõe sobre os limites de ruídos permitidos nos diferentes horários e locais da cidade. Infelizmente, a existência da Lei não tem sido suficiente para mudar o cenário de ruído excessivo que atravessa a nossa cidade, inclusive após às 22 horas, quando a Lei do Silêncio deveria ser cumprida.

A aplicação da Lei, bem como a adoção perene de uma revolução educacional, que vise substituir a apologia do barulho pela cultura do silêncio, deve ser o alvo de qualquer política pública que tenha como meta mudar essa realidade devastadora para a saúde humana e dos demais animais. Em um mundo tão barulhento e repleto de estímulos, o silêncio torna-se um tesouro de valor inestimável.



** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Alfenas Hoje, sendo de responsabilidade do autor.

 



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