Postado em sábado, 12 de agosto de 2023

Notícia do “hotel das ruas”


 Em vez de participar da gincana populista que se tem tornado o mercado editorial brasileiro, Sérgio Fantini vem optando, há umas boas décadas, por manter-se fiel à tradição moderna que ensina ser a forma o que define um texto como literário. É claro que seria melhor, para o escritor e para os leitores, se sua obra fosse publicada por uma grande editora e estivesse disponível em qualquer livraria. Mas a honestidade e a coerência, em qualquer ramo de atividade, têm um preço; por isso, não é tão fácil encontrar por aí um livro de Fantini – que morou em Alfenas um curto período, em 1987, e vai participar, no próximo dia 16, da sétima edição da feira literária da cidade.

Da obra desse escritor nascido em Belo Horizonte, Lambe-lambe (2016) é o livro que melhor sintetiza sua constante experimentação com a forma. Nele, Fantini segue a trilha iniciada ainda na condição de jovem poeta “marginal”, como se dizia na época: aqueles que publicavam pequenos volumes mimeografados e vendiam de mão em mão, nas portas de cinemas e teatros. Lambe-lambe representa o ápice de um percurso que parte da poesia breve em direção à narrativa breve, e ao longo do qual o escritor se tornou contista dos melhores.

O que primeiro salta aos olhos é que ele sabe escrever. Isso deveria ser óbvio, mas existe uma legião de autores, alguns até muito famosos, que simplesmente não dominam o instrumental mínimo necessário à escrita comum, menos ainda à literatura, categoria na qual os países civilizados se acostumaram a classificar as mais elaboradas realizações textuais. Fantini tem consciência apurada de seus “materiaes”, tanto que essa palavra foi tomada como título de um de seus livros.

Reconhecida a qualidade da linguagem, porém, o leitor talvez se sinta meio mareado pelo objeto que o escritor elabora. Lambe-lambe é um livro-happening que, estruturando-se a partir de uma sequência anafórica de textos curtos, se produz como variação de si mesmo. Cada novo item da sequência (são contos? são crônicas?) parece, a princípio, ser feito dos mesmos elementos do anterior, mas o conjunto acaba criando um movimento de transformação que resulta em soma muito diferente da simples acumulação das partes.

Descrevendo melhor: os textos começam sempre pela expressão “São esses” (ou “essas”) seguida de um substantivo: “São esses mendigos” etc. Vem depois a exposição do papel representado pela espécie que o substantivo nomeia, num estilo objetivo que, vistas as categorias relacionadas no sumário, indica o propósito de formular definições genéricas de, por exemplo, cães, pesquisadores e ciganas. De saída, a lista não se restringe a seres vivos, logo incluindo “barbearias”; é que faz parte do projeto subverter sua própria forma, tornando-a crescentemente menos previsível e mais desconcertante até no que lhe persiste de repetição.

Visto por alto, o sumário que resulta desse processo é uma amostragem da fauna urbana de Belo Horizonte. Mas surge logo o complicador: cada texto é seguido de uma ilustração – e elas são excelentes – de Guga Schultze, a qual representa certo indivíduo que não parece ter nada a ver com a sequência. Esses personagens têm nomes esdrúxulos como Relaida Carabino e Catabriga Heubler, os quais parecem consistir em acoplagens meio aleatórias de outros, mais comuns. A que vêm eles? Não existe resposta óbvia, pois tais personagens dão forma a uma dialética bem desconcertante entre a identidade coletiva definida nos textos e individualidades factícias sintetizadas em termos brevíssimos, ao que parece, o mais das vezes, feitos da colagem de horóscopos e frases soltas apanhadas aqui e acolá, entre elas algumas bem reconhecíveis, como o ressocrático “quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa” de Riobaldo Tatarana, o narrador de Grande sertão: veredas (1956).

Às vezes o nome desse personagem tem origem bem reconhecível, como Hericlapton Kriptus ou Naida Você-Me-Mata, moça que “Com o corpo, fala tristezas que as palavras desconhecem” e que é “uma eterna apaixonada por fonemas e por pessoas inteiras”, além de não se importar “com seu sobrenome nem com quanto carrega no bolso”. Essa falta de lastro do nome próprio lembra muito o procedimento-base da obra de Uilcon Pereira, cujo romance No coração dos boatos (1984) é uma das mais radicais realizações da ficção brasileira.

Mas talvez, enquanto o leitor estava distraído com a prestidigitação textual executada pelo escritor, tenha ocorrido algum novo tipo de mudança no movimento principal de Lambe-lambe; nessa brincadeira também consiste o trabalho de Fantini, que, enquanto se esquiva à classificação como cronista urbano ou contista, verte ocasionalmente um pouco de poesia em sua fórmula e não permite que a gente leia o texto sossegada a respeito do que ele seja. Sabotar a fixidez dos gêneros – que é sempre garantia de alguma exposição e vendagem, pois as pessoas gostam do fácil – acaba se revelando um dos grandes objetivos do livro.

Próximo de concluir, Fantini inclui “esses políticos” numa lista em que predominavam categorias miúdas, retornando logo depois a “esses miseráveis”, que ecoam os mendigos lá do início. É então que o retratista se assume como tal, mas não percamos de vista que seus instantâneos incluem, de passagem, esboços de narrativas que dariam ótimos contos, até mesmo um de ficção científica. O lambe-lambe retorna à cena do primeiro texto, na qual famílias interioranas, recém-chegadas à capital mineira, viam-se atarantadas no Parque Municipal, e faz uma autocrítica:

São esses fotógrafos com um olho voltado para dentro, incapazes de registrar com
qualidade o que veem, ajustar o foco, acertar o flash de magnésio e sempre clicando
quando o modelo se abaixa para amarrar o sapato.

Essa autoindagação, um dos elementos incorporados ao longo da sucessão de textos, ricocheteia no leitor, amiúde sacudido em seu mundinho de certezas, perturbado pela presença constante de “hóspedes do hotel das ruas” e outros seres irritantes como os motoboys – de que ele mesmo talvez seja um exemplar (existem leitores-motoboys? motoboys-leitores?):

Porque muitos desses motoboys um dia foram pedestres e nem todos se lembram disso.
Porque outros tantos têm consciência de que atingiram o estágio superior na cadeia
motorizada da sociedade e vivem em êxtase com suas motos mesmo quando não estão
sobre elas.


Lambe-lambe é feito, sobretudo, da recusa ao que o senso comum espera da literatura. Ao não se deixar capturar por uma definição estável, o experimento de Sérgio Fantini recusa ao leitor o efeito consolador que a maioria das pessoas busca na ficção e em outras instâncias também ficcionadas, a convicção de que em algum lugar existe alguém capaz de nos explicar o mundo. O resultado mais interessante de tal recusa é que, em vista da insatisfação que a leitura do livro provoca, dificilmente o venderemos no sebo ou doaremos a qualquer biblioteca (até porque se trata de uma bela edição); mais provavelmente, daqui a algum tempo teremos vontade de o reler, renovando a surpresa e o desconforto de deparar com um fragmento do mundo cuja estranheza nos lembra o quanto costumamos mentir para nós mesmos ao dizer que está tudo entendido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Alfenas Hoje

 



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