Postado em domingo, 25 de maio de 2025 às 11:11

(Re) Born to be wild

O promotor de Justiça Frederico Carvalho de Araújo faz uma análise sobre a legislação referente a menores em conflito com a lei partir do homicídio de uma adolescente em Uberaba. Confira!


 Por Frederico Carvalho de Araújo


Sou promotor de Justiça, atuante na área criminal. Brasileiro. Mineiro. Cidadão. Nascido na década de 1970, de onde trago muitos dos meus valores, princípios e alguns preconceitos, dos quais não me orgulho (por que não dizer?).

Tenho por hábito a leitura. Mais do que um costume, é um prazer. Um hobby.

Leio de tudo e com gosto. Sou um entusiasta da palavra, meu instrumento de trabalho. Viciado em autêntica poesia. Admiro as boas obras, ainda que desconhecidas do grande público. Aliás, frequentemente, prefiro o que está à margem do grande público.

Por força também da profissão, sou igualmente atento às notícias. É preciso estar informado, cada vez mais. Ocorre que, no andar da rotina, estar informado é estar assustado. É se tornar um indignado. É permanecer inconformado e impotente. É perder um pouco da saúde.

Na data de ontem, especificamente, eu me deparei com mais uma notícia estarrecedora: em uma escola particular de Uberaba (MG), no último dia 08 de maio, uma adolescente de apenas 14 anos foi brutalmente assassinada com golpes de faca, todos direcionados ao seu coração.

Segundo o apurado, dois de seus colegas, também adolescentes, foram os responsáveis pela barbárie. A vítima sequer conseguiu esboçar defesa, eis que surpreendida por um de seus algozes, o qual repentinamente se aproximou, entregou a ela a um bilhete (a “sentença de morte”), após o que desfechou os golpes mortais. Ela sequer conseguiu compreender o que estava acontecendo. Tudo, absolutamente tudo, gravado por câmeras de segurança.

Ouvido, o adolescente “em conflito com a lei” argumentou que assim agiu porque a colega “simbolizava a alegria que ele não tinha”. Não houve briga entre eles. Não há notícia de desentendimentos prévios. Nada de bullying ou racismo. Nem mesmo uma rusga. Nem ao menos um palavrão dito no calor de uma corriqueira discussão de colégio. Nada.

A menina chegou a ser socorrida, mas morreu no local. O agressor, por sua vez, saiu da sala caminhando, tranquilamente, antes da chegada dos agentes de autoridade. Foi encontrado horas depois, já na rodovia AMG-2595, após uma denúncia anônima.

Apreendido, confessou a prática (delituosa) infracional, dando conta de que a arma utilizada encontrava-se cravada em uma árvore. O comparsa, que havia prestado auxílio na fuga do facínora, foi igualmente encontrado e ambos seguem internados provisoriamente em um centro de atendimento socioeducativo, aguardando julgamento.

O mais impressionante é que, segundo as investigações, “a vítima foi escolhida a esmo pelo primeiro autor” (UOL, 20.05.2025).

Lendo os comentários dos leitores das matérias, percebi que muitos procuravam encontrar alguma “justificativa” para a prática nefasta empreendida pelos infratores. Alguns argumentavam com a possibilidade de serem eles desprovidos de consciência sobre o que haviam feito. Outros tantos, afirmaram que talvez fossem pessoas “neurodiversas” e, portanto, merecedores de abrandamentos legais. Eu só consegui visualizar maldade, vontade, dolo e premeditação.

É inacreditável como tudo é relativizado hoje em dia. A vida da garota, o sopro divino, foi desvalorada pelos próprios exterminadores. A responsabilidade dos assassinos, diminuída (ou compreendida) pelos “especialistas” da rede social, todos imbuídos de um desejo incontrolável de simplesmente perdoar. O julgamento será adequado? Há, efetivamente, algum julgamento que seja adequado? Só o tempo dirá.

Os assassinos seguirão as suas vidas.

No ponto, a lei de regência, o famigerado “Estatuto da Criança e do Adolescente” - Lei Federal n. 8.069/90, prevê como consequência para a conduta dos jovens, menores de dezoito anos, o máximo de três (sim, apenas três!) anos de “internação” (o que não se confunde com prisão – art. 121, parágrafo 3o).

Não é preciso grande esforço intelectual para se concluir pela absoluta impossibilidade de obtenção de justiça concreta no caso posto.

Para a vítima, pena de morte, sem direito ao contraditório. Sem chance de defesa. Para a vítima, a perda repentina de todas as suas possibilidades e potencialidades enquanto “pessoa em desenvolvimento”. Aos pais, familiares e amigos enlutados, nem esperança restará.

O Brasil está em absoluto descompasso com a sua própria realidade social. Países desenvolvidos estabelecem, há muito, punições mais severas àqueles que transgridem a lei, pelo menos a partir dos dezesseis anos. Por aqui, só há oficialmente a prática de um delito se o criminoso já tiver ultrapassado a fronteira imaginária dos dezoito anos.

Como bem ponderado pelo Prof. Edilson Mougenot Bonfim, em entrevista recente ao Jornal da Band, “será que os nossos criminosos só amadurecem mais tarde”?

Fato é que desde a promulgação da legislação citada, muitas mudanças – para pior – foram verificadas no cenário brasileiro, em especial o incremento da prática de condutas delitivas – eufemisticamente chamadas de “atos infracionais” – por menores de 12, 13, 14 e 15 anos de idade. Roubos, estupros, homicídios e tráfico de drogas. Não parece prudente que, ainda hoje, estejam eles a merecer a indulgência de um Estado que não consegue enxergar as agruras dos tempos modernos.

Na lida diária, eu me deparo com criminosos de todas as espécies. Inclusive com os “menores”, envolvidos na dinâmica local do tráfico de drogas. Fazem o “trabalho de rua” para os “chefes”, auxiliando na produção, entregando, repassando, transportando, ocultando e vendendo tóxicos. De regra, são impetuosos, debochados e avalentoados. Almejam atrair simpatia e atenção de seus superiores, buscando a ascensão na “carreira criminosa”. Nem de longe se parecem com o “adolescente infrator” outrora idealizado pela lei.

Diante de um tal contexto, fica a pergunta: será que a sociedade brasileira deseja seguir tão desprotegida? Ou melhor: será que a sociedade brasileira tem ao menos noção de que é tão escanteada pelo Estado-legislador? Terá chegado o momento propício para um debate sério acerca da redução da chamada maioridade penal?

Penso que sim.

Sobretudo porque a vida, bem supremo, precisa estar no centro das discussões jurídicas e políticas. Não o arremedo de vida, própria do universo doentio dos bebês “reborn”. Mas as vidas que respiram, que sofrem e que têm esperança.

As nossas vidas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Alfenas Hoje, sendo de responsabilidade do autor.



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